“Às vezes, você sonha com as estradas de Destino, e especula, sem propósito algum.
Sonha com os passos dados e com os que não deu.”
(“Estação das Brumas”, Neil Gaiman)
Caminhava sem rumo como de costume, ruminando pensamentos soltos, do mesmo modo como tenho vivido. Nunca tive ocupação fixa, mas me considero um escritor, se não de fato pelo menos de direito; mas com um sorriso amargo, lembro o conselho tantas vezes dado pela minha família:
“— Por que não escreve sobre os seus fracassos? Pelo menos não vai passar fome, vai ter bastante papel para comer...”
Meu povo é simpático, não é mesmo? Já nem ligo mais, o que talvez seja um erro; enfim, inevitável, conquanto inútil, pensar na vida. Estou perigosamente perto dos quarenta, o que pode ter me tornado um tanto cínico: passei pela época da rebeldia sem causa, passei pelo socialismo, passei pela época do ateísmo (mas devo confessar, nunca pude acreditar no acaso determinista), poucos de meus heróis foram sacrificados a contento, no mais das vezes eles se acomodaram; e afinal, quem haveria de recriminá-los? A clássica maioria silenciosa? Acho que não.
Uma frase de Oscar Wilde sempre me faz rir sozinho: “Deus, ao criar o homem, superestimou Sua capacidade”; simplesmente perfeito! O que não significa que eu deteste meus semelhantes ou a mim mesmo, apenas sou um tanto cético a nosso respeito; afinal, o que é a história humana comparada com os 400 milhões de anos da estirpe da barata: seria tempo demais para uma inutilidade existir, não? Agora, quanto ao homo sapiens...
São pensamentos como este que me mantêm longe das camisas-de-força, tanto as do escritório quanto as do hospício; também me mantêm longe de uma existência decente, mas, afinal, não se pode ter tudo...
Frases demais para pouca história, melhor resumir: longe de estar satisfeito com minha vida, sempre estive mais longe ainda de querer mudá-la; e desse modo cheguei à encruzilhada.
Não reconheci os arredores: um campo de capim baixo e poucas árvores retorcidas. Tentava entender como havia parado ali quando percebi vindo em minha direção, pelo braço da esquerda, uma figura bastante estranha. Passo rápido e curto, cabeça pendente e camisa abotoada até o queixo, livros e caixas de CDs atrapalhando ainda mais os movimentos desajeitados. Passou por mim com um olhar desconfiado e esquivo por cima da acne onde ainda pude ver, antes que ele desaparecesse, além do desgosto que minha visão certamente lhe causou, uma sutil perfídia embalsamada.
Aquele era eu mesmo. Ou teria sido, caso me tivesse tornado o nerd que nasci para ser.
Num lampejo de identificação, conheci os sentimentos daquele sujeito bizarro: vivia feliz como um pinto no lixo, mesmo sendo um mero farrapo de ser humano e saber disso; ainda assim, a criatura de cabelo escovado encontrou motivos para me desprezar... Talvez estivesse reagindo à avaliação que eu fazia do seu modo de vida: sempre me considerei afortunado por ter escapado da síndrome de gênio que me quiseram atribuir à época escolar (antes era considerado retardado, como os autistas eram então chamados; depois, apenas louco).
“— Pff! Difícil dizer qual de nós ficou mais constrangido em ver o outro...”
Ainda pensava no que fazer quando do caminho à direita surgiu outra figura, andando num passo de pantera bêbada. De novo, nenhum de nós se olhou diretamente nos olhos, com uma diferença: enquanto o nerd apenas evitava uma imagem que lhe era penosa, eu e este procurávamos subterfúgios para jogar a responsabilidade do não reconhecimento mútuo no outro. O novo eu parecia uma imagem refletida no espelho, exceto que havia algo de profundamente mal encaixado em si, algo que nem mesmo minhas contradições admitiriam. Então, mais uma vez, eu soube.
Este outro eu havia sucumbido à incontinência urinária noturna que o perseguiu até a adolescência, à ilusão de que sofrera abusos de algum modo por parte de algum familiar e à insensibildade emocional. Ao passar por mim, tive a visão de sua vida, que se resumia ao modus operandi de sua obsessão. Encontrava pessoas em praticamente qualquer lugar, hora e situação, sem fazer distinção de sexo, etnia ou classe social; seu único limite era a idade, ignorava crianças. Então fazia o que a voz lhe havia ensinado: com um canivete suíço, extraia-lhes os olhos, que colocava nas palmas de suas mãos e costurava-lhes as pálpebras, orelhas, narinas e bocas, arranjando os cadáveres em posição fetal. Era tão metódico que jamais deixava uma só pista para as autoridades e, a depender do perfil das vítimas, jamais seria apanhado: do ponto de vista dos investigadores não havia um único traço comum ligando as pessoas que ele revelava. Apenas ele e a voz sabiam que havia.
Demonstrou apenas surpresa ao perceber quem eu era (estou certo de que ele, como o cê-dê-efe, tiveram de mim a mesma profunda compreensão que tive deles). Seria loucura dizer que este eu fosse feliz; porém, em toda a minha vida, jamais conheci alguém com tamanho senso de objetivo ou tão bem ajustado à finalidade de sua existência.
“...até hoje não sei como não me caguei todo à sua passagem...”
Ainda cruzei com três outros espectros de mim mesmo, vindos do caminho em frente: um músico, um ocultista e um empresário. Todos me cumprimentaram com a minha mesma reserva efusiva (seja isso o que for); percebi que eram todos profundamente frustrados em suas ambições, pelo simples fato de tê-las levado a sério. Sinceramente, nada senti por eles; o melhor que posso dizer é que eram exatamente o que eu já quis ser, e que isso simplesmente não valia a pena.
Aquela procissão de alter egos estava me cansando, sem dizer o quanto me assustava; olhei para trás, procurando o caminho de volta. Nada. Quando me voltei para a encruzilhada, vi o caixão bem no meio.
Sorri tristemente, me aproximando sem medo. Naquele pequeno caixão estava o corpo de uma criança de 13 anos, o único que havia ignorado aquela misteriosa presença no alto do prédio onde subi (melhor dizendo, subimos), planejando um suicídio que a curiosidade incutida pela presença invisível evitou; a mesma presença que apenas um de todos nós não só ainda sentia, mas costumava ouvir...
Subitamente, o ar me faltou e o mundo começou a girar.
Sobre o caixão havia um minúsculo e palpitante embrião humano, de poucas semanas de vida. O embrião que absorveu um outro embrião no útero da mãe.
“Eu disse um outro embrião? Aquela era, foi, teria sido a minha irmã gêmea...”
Minutos ou séculos depois, não sei como estava em frente a minha casa, a chave do portão na mão, nos ouvidos a balbúrdia de sempre da vizinhança; a pouca distância, um cachorro e uma menininha suja de terra me olhavam como se eu tivesse acabado de brotar do chão.
Entrei e, no quarto escuro e empoeirado, liguei o computador e comecei a escrever. E nunca mais parei.
Desde que li o conto “El otro”, n’ “El Libro de Arena” de Jorge Luis Borges tive vontade de escrever uma história de Doppelgänger; apenas me veio à cabeça uma encruzilhada. Depois de ignorada por mais de dois meses, eis que sem aviso essa idéia tornou-se o que acabaram de ler, numa tarde morta e ressecada como asas de iguanas.