31 de jan. de 2010

Perdida na multidão, ela foi

Eu nunca escrevi sobre amor aqui. Eu nunca escrevi nada que fosse real. Nunca achei que precisasse.

Até que ela me achou, perdido na vida. Até hoje.

Hoje, eu não sei aonde ela se perdeu, ou se fui eu que a perdi. Hoje, eu estou perdido na multidão, procurando por ela. Por ela que eu não quis achar quando podia...

Vera Lucia, luz verdadeira de minha vida perdida.

Perdição de minh’alma. Perdição de mim mesmo. Perdoe-me, luz que não iluminou as trevas que não queriam a luz.

A vela que amaldiçoava a escuridão apagou-se. Adeus.

Canto Triste de uma Adaga Enferrujada

Vocês sabem que eu nasci antes de vocês, antes do ferro, antes do bronze, antes do aço; e vocês sabem que eu sobreviverei aos seus escombros — em queratina, em esmalte, em marfim: eu sou o dente de tudo que vive, de tudo que mata.

Vocês sabem o quanto devem a mim, o quanto me amaram antes. Mas agora me rejeitam; então inventaram essa maldita prisão, essa bainha que me oprime, essa escuridão que cega a ambos, a mim e a vocês.

Paz, disseram vocês. Chega de sofrimento e mortes, disseram vocês. Chega de derramar sangue.

E em que sua “paz” resultou, senão num caudal de sangue ainda mais largo, ainda mais profundo, ainda mais gratuito? Sua inteligência serviu para outra coisa senão tornar a carnificina banal, algo que qualquer criança pode infringir a qualquer um — e qualquer um infringir a qualquer criança? Não foi institucionalizada a covardia imbecil do chumbo e da pólvora, da dinamite, do urânio, dos germes até, em nome de sua suposta “paz”?

Para isso me aposentaram, para isso me aprisionaram? “Chega de derramar sangue”?


... e para que serve o sangue, senão para derramar?

Ouçam minha profecia: chegará o dia em que, destituídos de seus malditos projéteis, imunizados de suas abjetas doenças, privados de seus imundos combustíveis, agastados de sua nojenta complacência com a miséria que alimenta vidas inúteis, cercados pelos cadáveres que sua volúpia homicida não pode assassinar outra vez, vocês se voltarão para o passado — implorando perdão, acariciando a empunhadura azinhavrada e clamando para que eu saia de minha prisão e lhes conceda a “paz” que não merecem.

E minha lâmina, quebradiça como folha seca pela ferrugem a que vocês a condenaram — minha sede de sangue há muito esquecida — se desfará em pó contra suas gargantas — imagem da esperança de repouso que vocês acalentaram em vão.

23 de jan. de 2010

O que foi, sem nunca ter sido

“Quizá la historia universal es la historia de la diversa entonación de algunas metáforas”.
Jorge Luiz Borges, "La Esfera de Pascal" in "Otras Inquisiciones" - 1952.



Na minha opinião, História é um trançado temporário de elipses sortidas.

15 de jan. de 2010

Bestiário

Um escorpião mora em minha língua. Pela minha voz ele ataca, sem provocação, àqueles com quem falo: envenena prazeres, apodrece solicitudes, mumifica esperanças. Não riria disso, mesmo que pudesse.

Uma cobra-cega mora nos meus olhos, enrolada neles. Ambos só eles. Ambos sem cor. Ambos ambidestros. Ambos inúteis.

Um ninho de vespas mora em meus ouvidos. Os sons do mundo me chegam borrados, indistintos, perigosos — carregados de ameaças que o mundo não me faz, destituídos das promessas que não me alcançam, barulhentos num mundo em que silêncio é morte e a morte é ruído. Esse constante ruído — esse ruído constante — esse ruído — ruído — ruído — ruído —

Uma lampréia mora em minha pele e ossos, só boca e dentes e língua sem mandíbula, parasita de outros peixes — coisas — idéias — pessoas. E esses não sabem que eu estou lá. Ou não querem saber.

Um lobo mora, faminto, em minhas vísceras. Se você me encontrar, fuja ou mate-me. Não fará diferença, desde que eu não o alcance primeiro.

Um elefante mora em meu fígado. Quanto mais eu me entorpeço, mais ele me regenera — para sofrer do envenenamento de novo. E ai de quem cruzar os meus passos.

Uma jibóia mora em meus braços e pernas: eles se enroscam em você e tiram seu fôlego bem devagar. E depois eu vou ficar imóvel por seis meses, digerindo, esperando. Esperando outro você. Esperando o mesmo você de sempre.

Um formigueiro mora em meus pés. Não tenho objetivo senão seguir irracionalmente em frente, não tenho descanso senão na morte que não chega nunca.

Um abutre mora em minhas veias, comendo a carniça da civilização, rapinando idéias mortas de sábios esquecidos, esperando que os sábios lembrados morram. Pois eu tenho fome.

Uma tartaruga gigante mora em meu cérebro. Conheço o mundo com remelentos olhos seculares, masco conhecimento com um seco bico córneo, defeco pedras fúnebres: desprezo o passado, desprezo o presente, desprezo o futuro; desprezo a mim mesmo. E ainda estou aqui.

Vermes moram em meu coração.

7 de jan. de 2010

An Dàn: O Lobo à minha Porta, o Esqueleto em meu Armário

Quando eu nasci, meu destino estava traçado: eu deveria ser mais um escravo das circunstâncias.

Quando eu descobri que era escravo, eu me revoltei mas ‘meu sangue’ falou mais alto e eu me calei.

Quando eu quis proteger ‘meu sangue’, me resignei: troquei minha liberdade pelo conforto de ser ‘normal’.

Quando eu quis aproveitar a vida ‘normal’, joguei-a fora: fiz tudo o que os meus donos esperavam que eu fizesse.

Quando eu percebi meu erro, era tarde demais e a próxima geração colherá agora os frutos podres de minha semeadura.

Hoje estou a beira do nosso abismo comum, olhando para o futuro com olhos miraculosamente límpidos.

Se arrependimento matasse...



An Dàn: “destino” em gaelico.

2 de jan. de 2010

Começou de novo!

Lá vamos nós abraçar o Eterno Retorno por mais 365 dias.

Ano que começou como os outros: festas e catástrofes misturadas. Esperanças e medos misturados. Solidão e companhia misturados.

Tudo misturado, como sempre... Bem, assim somos nós.

Aproveitemos o máximo do que vier!