Canto Triste de uma Adaga Enferrujada
Vocês sabem que eu nasci antes de vocês, antes do ferro, antes do bronze, antes do aço; e vocês sabem que eu sobreviverei aos seus escombros — em queratina, em esmalte, em marfim: eu sou o dente de tudo que vive, de tudo que mata.
Vocês sabem o quanto devem a mim, o quanto me amaram antes. Mas agora me rejeitam; então inventaram essa maldita prisão, essa bainha que me oprime, essa escuridão que cega a ambos, a mim e a vocês.
Paz, disseram vocês. Chega de sofrimento e mortes, disseram vocês. Chega de derramar sangue.
E em que sua “paz” resultou, senão num caudal de sangue ainda mais largo, ainda mais profundo, ainda mais gratuito? Sua inteligência serviu para outra coisa senão tornar a carnificina banal, algo que qualquer criança pode infringir a qualquer um — e qualquer um infringir a qualquer criança? Não foi institucionalizada a covardia imbecil do chumbo e da pólvora, da dinamite, do urânio, dos germes até, em nome de sua suposta “paz”?
Para isso me aposentaram, para isso me aprisionaram? “Chega de derramar sangue”?
E minha lâmina, quebradiça como folha seca pela ferrugem a que vocês a condenaram — minha sede de sangue há muito esquecida — se desfará em pó contra suas gargantas — imagem da esperança de repouso que vocês acalentaram em vão.
4 contrapontos:
Ótimo texto. Mostra o quanto vivemos num mundo onde tudo se torna mais descartável, inclusive as pessoas e os seus valores.
Abçs!!
isso me pareceu um encantamento élfico de Tolkien
É quase isso mesmo, de ambos os lados.
A amargura que nasce do esquecimento.
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