31 de jan. de 2010

Canto Triste de uma Adaga Enferrujada

Vocês sabem que eu nasci antes de vocês, antes do ferro, antes do bronze, antes do aço; e vocês sabem que eu sobreviverei aos seus escombros — em queratina, em esmalte, em marfim: eu sou o dente de tudo que vive, de tudo que mata.

Vocês sabem o quanto devem a mim, o quanto me amaram antes. Mas agora me rejeitam; então inventaram essa maldita prisão, essa bainha que me oprime, essa escuridão que cega a ambos, a mim e a vocês.

Paz, disseram vocês. Chega de sofrimento e mortes, disseram vocês. Chega de derramar sangue.

E em que sua “paz” resultou, senão num caudal de sangue ainda mais largo, ainda mais profundo, ainda mais gratuito? Sua inteligência serviu para outra coisa senão tornar a carnificina banal, algo que qualquer criança pode infringir a qualquer um — e qualquer um infringir a qualquer criança? Não foi institucionalizada a covardia imbecil do chumbo e da pólvora, da dinamite, do urânio, dos germes até, em nome de sua suposta “paz”?

Para isso me aposentaram, para isso me aprisionaram? “Chega de derramar sangue”?


... e para que serve o sangue, senão para derramar?

Ouçam minha profecia: chegará o dia em que, destituídos de seus malditos projéteis, imunizados de suas abjetas doenças, privados de seus imundos combustíveis, agastados de sua nojenta complacência com a miséria que alimenta vidas inúteis, cercados pelos cadáveres que sua volúpia homicida não pode assassinar outra vez, vocês se voltarão para o passado — implorando perdão, acariciando a empunhadura azinhavrada e clamando para que eu saia de minha prisão e lhes conceda a “paz” que não merecem.

E minha lâmina, quebradiça como folha seca pela ferrugem a que vocês a condenaram — minha sede de sangue há muito esquecida — se desfará em pó contra suas gargantas — imagem da esperança de repouso que vocês acalentaram em vão.

4 contrapontos:

Danilo Moreira disse...

Ótimo texto. Mostra o quanto vivemos num mundo onde tudo se torna mais descartável, inclusive as pessoas e os seus valores.

Abçs!!

FOXX disse...

isso me pareceu um encantamento élfico de Tolkien

ex-amnésico disse...

É quase isso mesmo, de ambos os lados.

Bruno disse...

A amargura que nasce do esquecimento.