1 de mai. de 2007

Sete vidas eu tivesse...


Hoje, no bar que é o farol dos meus dias vazios nesta cidade vazia, estava admirando o andar da gata que o seu (nominalmente) dono acompanhava até o terreno de uma casa em construção, rotina diária; disse então para mim mesmo: “que animal magnífico!”.
Para meu espanto, como se tivesse me ouvido (ou captado meus pensamentos) ela voltou-se imediatamente e me olhou direto nos olhos, como se dissesse: - “Nunca viste?!” Mais que depressa, desviei o olhar e confesso, tão constrangido como se tivesse sido flagrado por uma mulher a quem admirasse em segredo...
Voltava para casa, ao cair da noite, não muito tempo depois deste episódio; vi então um gato numa esquina, olhando para uma estrela. Não qualquer estrela: ele mirava Sírius, da constelação do Cão Maior, a estrela mais brilhante dos céus. Quando se vê um animal olhar para as estrelas? E mais, para uma determinada estrela? Eu vi. Hoje. E logo em seguida, vi uma jovem mãe e sua filha por volta dos dez anos libertarem um gato [siamês] que tentavam levar consigo; provavelmente encontraram-no na rua, apesar de ele ser um belo e bem cuidado [angorá], e não um gato vadio. Ele não quis ir, não nesta noite. Nesta mesma noite. Eu vi.
Referi-me aos gatos como animais, mais certo seria chamá-los de entidades. Pois não são criaturas comuns como os cães, papagaios e outros mimos domésticos. Gatos têm uma alma secreta, indevassável, que poucos sabem realmente apreciar. Eles não são possessão de ninguém; quem se diz dono de um gato não passa de um iludido: os gatos nos dão o favor de sua companhia, quando lhes agrada. Nada mais nem menos que isso. São seres filosóficos, introspectivos; seus sentidos parecem perceber uma realidade mais ampla que a permitida aos nossos. Como pareceríamos, do ponto de vista de um gato, com nossas toscas tentativas de agradá-los ou evitá-los, com nossas superstições e fobias a seu respeito? O que ele nos diria posto que se dignasse a reparar nessas nossas excentricidades? Seria condescendente como de costume, suportando nossas investidas e recuos caninamente infantis? Ou reverteria, enfastiado, à nobre selvageria jamais renunciada de todo?
Amiúde reflito sobre esses entes, que amo com a mesma reserva por eles demonstrada em sua convivência conosco. Meu próprio relacionamento é incidental, pois nunca cuidei de animais de estimação; o que não me impediu de ter “hóspedes” temporários entre os reis dos telhados e soberanos das madrugadas. Aprecio sobremaneira sua elegância, sua independência e sua lassidão deliberada; chego a desejar ser um deles, pouco afeito que sou à faina canina dos trabalhos e lazeres humanos; não à toa, nossa espécie tem como seu companheiro predileto o agitado e patético cão. Já os gatos são os eleitos de uma parcela da humanidade que enxerga neles, ainda que inconscientemente, a qualidade enigmática, propriamente cósmica, do mistério. Criaturas admiráveis, inconquistáveis, irrepreensíveis.
Hoje eu testemunhei um gato ler e reagir inteligentemente aos meus pensamentos, surpreendi outro a admirar absorto a mais brilhante das estrelas do céu e assisti à luta vitoriosa de um último por sua liberdade, não de ficar onde estivesse, mas de partir quando lhe aprouvesse. Hoje. Eu vi!


Coda (4/5)

Lendo o comentário deixado pela Vera, me dei conta de ter cometido uma injustiça, que desejo corrigir.
Marginalmente, referi-me a outros animais com um desdém que em nada favorece a causa felina (se é que existe tal causa), sem falar dos amantes desses animais, que estariam plenamente justificados em censurar-me, pelo modo grosseiro como foram tratados no texto. Queiram por favor perdoar-me.
Procurarei ser mais cauteloso ao expressar minhas opiniões, doravante.

* Erro crasso! O siamês contemplava a estrela, o angorá lutava pela liberdade. Realizei uma transformação digna de Maga Patalójika, numa única frase! Novamente, agradeço à Vera por apontá-lo!


8 contrapontos:

vera maya disse...

Querido,
Olha, nao tenho muita afinidade com gatos prefiro os cachorros, mas depois de ler seu texto....no mínimo, nunca mais um gato me passará despercebido, nunca mais vou avistar um gato com a velha indiferença.
Eu li!
Bjs
Vera

R. S. Diniz disse...

Eu amo gatos.

Anônimo disse...

Olá!!!
Que bom te reencontrar, estava com saudade dessa pessoa "doce" que trabalhava comigo!!!...que apagava o cigarro no carpete e era tão gentil e prestativo quando pediamos para que ouvisse uma música...hahahaha
Adorei seu texto, tem um gato aqui em casa que eu achava que era meu, ele fica preso no quintal, pq os vizinhos não gostam de gatos e pq tem uma cerca elétrica no prédio atrás da casa.
As vezes me sento com ele lá fora e fico pensando se é melhor ficar no quintal ou arriscar a vida pelos telhados, mas meu medo sempre vence.
Regiane

ex-amnésico disse...

Hahahahahaha! Doce feito giló! Hahahahahahaha!

Eu era chato, né? Mas entenda, não era nada com vocês (meu fígado, sabe como é...) ;)
Vê se mantém contato, de longe meu cigarro não incomoda, hehehehe!
Um beijo p/ vc e p/ seu gato*



*O felino, hein? =]

p.s.A vida nos telhados foi o preço que nós pagamos para termos os pés no chão...
Mas como é emocionante ver a vida lá de cima!

Anônimo disse...

Ahh!!Não fala isso!!!!
Minha consciência já esta tão pesada por deixa-lo preso!

Sei que não era conosco, por isso achava bem legal quando precisava de seus conhecimentos musicais, eu aprendia várias respostas malcriadas...ou bem-criadas, sei lá!!!...rsss
Beijo

Regiane

Anônimo disse...

Ahahahah...
As correções...nem precisava!!
Voce pode!!!
E nem acho que foi ruinzinho com os outros bichinhos..
Mesmo assim...valeu..!
Beijos

ex-amnésico disse...

1ª Se sua intenção é boa, seu gato sabe. Desencana! ;)

***

2ª Isso me faz lembrar uma frase (essa eu busquei de longe!):

"C'est le privilège du vrai génie, et surtout du génie qui ouvre une carrière, de faire impunement de grandes fautes."

"É privilégio do verdadeiro gênio, e sobretudo daquele que abre novos rumos, cometer impunemente grandes erros."
Voltaire

Chique, não?


...como se eu precisasse de incentivo para ficar convencido!hahahaha!

Anônimo disse...

Gostei da frase!!!!
Por alguns instantes me senti menos mal e menos mau tbm, mas ele (o gato) esta nesse momento sentado lá no quintal olhando pro nada e o que se passa na sua cabecinha eu posso imaginar, pq até eu já estou achando tudo aqui monótono...

Bjos

Regiane