Andava eu pelas ruas vazias, pensando tristemente no que o dono do boteco que freqüento costuma dizer daqui: “Nesta cidade, nem cachorro anda na rua!”, quando ouvi alguém chamando:
— Psiu!
Podia jurar que a rua estava deserta; porém, de rabo de olho, quase fora do alcance da visão, percebi um garoto de uns oito anos, mais ou menos. Como não estava disposto a aturar gracinha de moleque folgado, continuei meu caminho.
— Ô! Não se faz de surdo, não! Tô falando com você!
Voltei-me, irritado com a insistência, e devo dizer, bem espantado; havia algo naquela voz que não se espera ouvir vindo de uma criança.
— É comigo, moleque?
— Tá vendo mais alguém na rua? — disse, como se estivesse falando com um idiota.
Minha irritação cresceu.
— O que é que queres?
— Vim olhar você de perto. — A resposta me surpreendeu. Será que o moleque era doido?
— Doido é seu pai!
Agora eu estava parado ali, olhando em cheio pra ele, boquiaberto. Eu havia pensado aquilo! Como é que ele podia saber?!
— Que diabos está acontecendo aqui? Quem és tu?
— Acabou de dizer! — foi a resposta. — Eu sou o Diabo; não tinha o que fazer lá embaixo e vim dar uma olhada em você.
— Ah! Vá te foder, ô menino maluquinho!
Sei lá porque eu disse isso; vá lá que a situação era absurda, mas nada justifica rasgar o verbo por tão pouco.
— Te mandes, moleque! Vá pra casa, encher tua mãe!
— He, he, he!
Não sei porque, mas aquela risada foi pior que quando ele me chamou: vai ver, foi o jeito dela deixar o dia mais escuro, apesar do sol a pino. Mas, e o cheiro? Não entrava pelas narinas, nem pelos ouvidos ou pela boca, mas tomava conta da cabeça e do corpo, como se tivesse mergulhado numa piscina de sebo derretido junto com enxofre.
— Boca suja, hein? Depois falam de mim! Eu não ensinei isso pra ninguém...
— Ah, tá! Vais continuar com essa conversa besta, ô trombadinha?
— Ah, os homens! Sempre as mesmas bestas! Têm que ver pra crer... Pega um cigarro, então.
Se ele achou que ia me pegar de novo com esse negócio de adivinhação, caiu do cavalo! Grande coisa, com estes meus dedos amarelados, descobrir que eu fumo...
Ainda assim, a idéia já tinha mesmo me passado pela cabeça; peguei o cigarro.
— Fuma.
— Sem acender é, gênio? — E, só de farra, pus o cigarro apagado na boca.
Então ele fez aquilo! Só olhou para o cigarro, aquele olhar amarelo, e de repente era como se o sol não fosse mais porra nenhuma! O que eu senti ali, na minha cara, não era calor, não era fogo, não calor e fogo comuns. Comia tudo, pele, carne, osso; chegava a queimar até esperança. Mas o pior é que não doía. Não, a dor não é nada, passa; aquilo não. Eu nunca tinha entendido o significado da palavra desespero até ele evaporar aquele cigarro na minha boca e crestar a minha alma sem me deixar uma marca no corpo. Nem o negro gelado daqueles olhos sem fundo me apavoraram tanto. Bom, quase não.
E o filho da puta nem ria!
— E aí? Tá bom ou quer mais prova?
Desgraçado!
— Tá, eu acredito! — Confesso que levei bem uns dez minutos pra responder. Nisso pensei: Cadê todo mundo? Vá lá que o lugar é parado feito os postes de rua, mas naquela hora, com aquilo na minha frente, parecia que até o ar tinha sumido pro fundo da terra. Olhei em volta e não reconheci nada; era o mesmo lugar, mas ao mesmo tempo não era. Como é que tudo podia estar exatamente igual e completamente diferente na mesma olhada? Até hoje, eu não sei.
— O que queres comigo?
— Além de besta cê é surdo, é? Já falei. Vim ver você de perto.
— Por que? Vais levar-me contigo?
— Levar você? Pra que? Tá apaixonado é? — foi a resposta, surpreendente e zombeteira. O canalhinha era mesmo irritante!
— Apaixonado o cacete! Quero saber é o que queres!
— Qual é a sua, hein? Já falei três vezes: tô olhando você de perto, porra! Entendeu agora?
— Mas por que? Por que eu?
— E por que não?
Diabo ou não, essa conversa já estava me dando nos nervos! O puto estava me fazendo de palhaço!
— Eu não! Isso é obra sua!
— Chega, caralho! Ou paras com isso ou eu te arrebento! Vieste aqui só pra me atazanares, é?! Por que não vais matar o papa, tentares padre ou botares fogo em igreja, e paras de me encher o saco?
— Papa? Padre? Igreja? O que eu tenho a ver com isso?
Empaquei. Eu nem achava que o diabo perdesse tempo com essas besteiras; pra mim, era que nem aquela revista Vertigo, o negócio do capeta era ficar de papo pro ar, olhando pôr-do-sol que Deus manda, pensando se valeu a pena...
— Ainda não sei.
Agora eu não sabia o que pensar.
— Olhe, eu não...
— Deixa pra lá. Problema meu. E depois, faz muito tempo...
E o vazio absoluto que eu senti naquela resposta foi ainda pior que tudo que ele me fez sentir antes.
— Nós vamos pra algum lugar? — tive que perguntar, só pra quebrar o gelo que ameaçava engolir o mundo.
— Tem algum lugar pra se ir nesse lugarzinho morto? — Quase senti simpatia naquela pergunta. Quase.
— Que eu vou, só o boteco onde eu tomo umas...
— É, eu sei. Mas lá o velho não vai servir cerveja pra menor, né?
— De jeito nenhum! Mas tu podes ficar grande, não podes?
— Você não sabe quanto! Mas não vim aqui pra fazer truque de circo.
— Se quiseres refrigerante...
— Não, obrigado. — senti o fastio na voz dele. E eu que me achava entediado! Putz!
— Bom, acho que já vou andando... — disse ele, olhando em volta — É muito chato aqui.
— Mas, e lá embaixo? — perguntei meio sem querer, por “educação”.
— Ah! Dá-se um jeito. Pelo menos, é bem mais interessante!
— Estás falando sério?
Ele piscou pra mim.
— Ah, se você soubesse...
E antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ele se virou e saiu correndo. Não virou em nenhuma esquina, não saiu do meu campo de visão. Não me lembro como foi que ele sumiu. Nem como, de repente, o mundo todo era o mesmo mundo de sempre. E nem um cachorro andava na rua.