22 de abr. de 2007

Easy Rider

Meu olhar percorre o horizonte, lento como o novo dia. Sob o céu claro, a pequena cidade se espalha, modorrenta em sua agitação de domingo. Nada do bucólico clima interiorano, isso é parte do passado. As casas, ruas, fumaça, pessoas, tudo acaba cercado pelo avanço inclemente da cana-de-açúcar. A vastidão verde-claro lembra um mar cercando uma pequena ilha de atol rasa e desprotegida. Seus habitantes, como caranguejos e pequenos répteis, se movem de lá para cá, inconscientes da ameaça na onda circundante. O aparente esteio do lugar, sua própria razão de existir, espreita, ameaçando engolir as construções, as gentes, a vida. Não é bonito de se ver.
Desvio os olhos para o céu imenso. De costume, encontro mais consolo olhando para as nuvens de dimensões épicas, durante os dias de calor sufocante, ou para as estrelas, nas noites pouco menos opressivas, povoadas de mosquitos e grilos, que nas diversões fabricadas do moderno. Mas ainda não anoiteceu, e o céu é um azul só, belo e monótono. É domingo; nesse dia, eu não sei viver.
Mecanicamente, começo a andar, a esmo como de costume. Queria pensar, observar esse pequeno pedaço de mundo e captar o que pudesse desse momento, mas minha atenção me falha; a visão geral borra, os detalhes desaparecem, sou uma máquina posta em movimento sem objetivo nem consciência, puro impulso. Eu quero ir embora, não exatamente desta cidade; alguma coisa me acena do lugar onde não estou, me convida para alguma outra coisa que não é agora, nem é aqui.
Quero ir embora, eu sempre quis. Só não sei para onde.
Essa angústia não me leva a lugar algum, nem serve a nenhum propósito. Eu a descarto. Nem sempre consigo me livrar dessas sensações incômodas, mais geralmente elas ficam agarradas como a ferrugem nos velhos portões dos casebres no meu caminho; hoje, sem motivo aparente, se soltam, como se nem mesmo me importunar lhes importasse. Hoje é domingo até mesmo para as minhas aflições. “Saímos a passeio. Voltamos na segunda-feira. Obrigado”.
O sol vai chegando ao pino, começa a ficar perigoso caminhar, o risco de insolação é grande, especialmente para quem bebe mais e come e dorme menos do que o razoável. Mas o prejuízo do corpo dá asas ao espírito; pelo menos sempre me pareceu assim, e em ocasiões como essa é possível deixar o corpo unido à terra, enquanto se dispara rumo a... ao que quer que haja além do cotidiano nosso de cada dia. Seja o que for, tem muitas formas de ser (ou antes, é amplo o bastante para acomodar as formas que imaginarmos); ultimamente, para mim significa sonhar acordado. Sonhar de verdade, como se faz durante o sono. Na verdade, esse é o meu estado normal, boa parte do tempo. Não que eu me ache singular nesse aspecto: a pesquisa científica a respeito já indicou que, normalmente, a humanidade vive num estado próximo às primeiras fases do transe hipnótico. A pretensão comum de vigília consciente não passa disso, pretensão. Minha singularidade consiste em reconhecer e aceitar o fato. Nem mais, nem menos. Bem, digamos que eu goste, também.
Me pergunto a razão destas idéias me assaltarem enquanto caminho; não encontro nenhuma. Muito independentes, os meus pensamentos se intrometem no meu sonho acordado com uma sem cerimônia que seria irritante, não fosse a placidez do dia. Soltos como um cão sem coleira, no dizer do italiano Dino Buzzatti sobre a mente de Albert Einstein, num conto diabólico. Diabólico. Soa bem, gosto disso. Sorrindo por dentro, interrompo o passeio num certo ponto. Meu farol, nas atuais noites escuras d’alma.

Intermezzo
De volta da lanchonete [editado: nome errado] Moura (n.a.: ponto turístico local, vale a pena a visita!). Lamentações pelo Corinthians, conversas sobre filmes de ação que eu não curto, duas horas de “ausência”, duas doses mais “alto”. Preparação de uma próxima ressaca: as chances desta publicação alcançar e eventualmente passar as sete postagens aumentam! Um brinde à inspiração (pós)etílica!


Não preciso andar muito para chegar à borda do canavial, praia seca, árida. O mesmo panorama, à esquerda, à direita. Acima, as nuvens começam a tomar o céu. Nenhuma chuva.
Continuo andando. Pouco tempo depois, estou de volta ao ponto de partida. Repentinamente, acaba: a serpente morde a cauda e eu mordo o meu tédio, ao chegar a essa casa que não é meu lar. O domingo escorre, oleoso, e barulhento, por conta dos vizinhos. Não os cumprimento: eu nada tenho para eles, eles nada têm para mim (a não ser sua incômoda eterna euforia; danem-se!).
Por fim, enfrentar o teclado novamente, perguntando-me o “o que” e “o porque” do que estou fazendo... Ora, essa pergunta já não tem mais sentido: estou fazendo e pronto! Sentido, pondero sabiamente, não se busca, se constrói; essas caminhadas são o projeto. Esses textos, a argamassa. Os sonhos, tijolos. Satisfeito, vou buscar a desempenadeira, há trabalho a fazer.
Vai ser um longo dia...






Que não se desespere o incauto leitor com o caráter monocórdico dos escritos ora apresentados. Ainda que o autor tenha se absolvido de antemão, sua inconstância promete mudanças, para bem ou para mal, quando menos esperadas. Esteja avisado, e passar bem.

2 contrapontos:

R. S. Diniz disse...

Eu também sonho acordado, boa parte do tempo, mas pra mim é um grande desafio fazer o que você fez nesse texto: registrar os pensamentos que acabara de ter após uma caminhada!

Eu viajo, deliro... mas poucas idéias consigo aproveitar.

Anônimo disse...

´"É domingo; nesse dia, eu nao sei viver"
Muito mais que nos outros tantos dias...
..e eu que pretenciosamente, me acreditava sózinha nessa estrada sem fim, que hoje sei, me levará a lugar nenhum...
navegar é preciso, viver nao é preciso..
Acertou de novo!
Grande Beijo!