24 de abr. de 2007

Passou por aqui e se foi

Era uma vez ela. Ou não foi de manhã? Seus cabelos embaraçavam fantasias, reflexos, o beijo de ontem. Continuemos. Para onde? Sua casa já não a comportava, teve de sair, deslocando estrelas e gatinhos abandonados pelas ruas em espiral. O ano mudou de cor, tímido.
Ela segue confiante, suas esperanças emudecidas pelo calor. Os olhares que a acompanhavam esbarraram uns nos outros, impedindo-se mutuamente sua visão, cegando-se em surdina. Vinha de uma festa, não se sabe onde, mas havia mar, pois vestia ondas. Que se espalharam pela cidade, lavando fachadas e sentimentos velhos, guardados em aborrecidas gavetas trancadas, cujas fechaduras sonhavam com segredos espiados à meia luz, a meio som. A amarelinha da calçada cantava o verde e o lilás das pedras da rua, as pedras não cantavam. As pedras com seus sonhos mantinham a rua fixa no lugar, com vontade de correr, correr, correr. E voltar a um tempo em que o pensamento não nascera, a diferença não se fizera, o fluxo da vida simples como uma torneira aberta, vertendo vinho e néctar num abraço sem mistura.
Seus passos deixando sombras claras no chão luminoso, sua silhueta moldando o espaço obediente ao seu redor, ela entoava uma canção feita de infância e borboletas à luz de velas. Contaram-se as pedras do círculo e eram quatro, sete e nove. A voz suave do sol beijou seus cabelos de fantasias, reflexos e fogueiras à noite, no confuso turbilhão do primeiro caos, do tudo que nada é, do nada que é cheio de ontem. Os suaves braços se expandem, abarcam a existência no instante mesmo em que essa se nega, jubilosa, abismo intocado. E desaparece, docemente satisfeita, na praça onde as idades passavam no relógio de ar.

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