5 de jun. de 2007

O circo chegou!





Sim, um circo intinerante está na cidade; na verdade, hoje é seu último espetáculo aqui, a preço único reduzido, o que, segundo a lógica do absolutismo capitalista em que atualmente vivemos (sob os ilusórios nomes de democracia e livre mercado), me parece um sinal de casa vazia. A razão, mais que a falta de dinheiro e o frio reinantes, seria seu próprio anacronismo, sobrevivente que é da Idade Média. Infelizmente não assisti a nenhuma sessão, nem para isso tenho dinheiro. Mas gostaria de saber como se saiu, nesse lugar onde ainda se podem encontrar pessoas que jamais puseram os pés num elevador ou escada rolante; nesse pedaço de mundo, que sob a aparência de andar em compasso com o século vigente, vive ainda na época do nascimento do próprio circo, com seu povo migrante e sofrido, seus trabalhos brutalmente árduos e mal remunerados, suas diversões e aborrecimentos igualmente brutalizantes, seus conflitos estupidamente violentos e mesquinhos...
Curiosamente percebo, pelo que acabo de escrever, que de fato aqui se anda em compasso com o século vigente; o que se vê por estas paragens não difere muito da paisagem do resto do mundo; o calendário insiste em me (nos) enganar, ainda é Idade Média!
Então, por que o circo intinerante se tornou essa nostagia dolorosa que sabe a infância longíqua e inocência perdida (para aqueles dentre nós que tivemos as emoções excitadas por seus prodígios e prazeres, e nossas fantasias embaladas por contos de fadas e folclore, reminiscência também de eras passadas)? Como foi que o simples e honesto esforço de se dar asas à fantasia dialogando com a audiência perdeu o encanto, enquanto seu nome foi apropriado por certos espetáculos altamente técnicos e sofisticados, totalmente desprovidos de magia evocativa?


Ou fomos nós que perdemos o sentido dessa magia? Nós, que saídos cedo demais (e cada vez mais cedo, a cada geração) da época do assombro e do encantamento, passamos a acreditar, tendo como base nenhum argumento convincente, que o mundo, a existência em si, não têm mistério. Nós, que incorporamos a ilusão ridícula dos intelectuais de poltronas&pranchetas, de que basta formular as questões da maneira prescrita e aplicar as técnicas recomendadas para que as requeridas respostas saltem aos olhos, cristalinas e estéreis. Nós que, ainda que nosso raciocínio nos diga o contrário, tomamos por realidade incontestável o testemunho de coisas tão frágeis e manipuláveis como livros, jornais e revistas impressos, noticiários de rádio e tv, opiniões de autoridades auto proclamadas, nosso próprio limitado e tantas vezes distocido ponto de vista; nós que, à guisa de fantasia, consumimos meras ideologias hipnotizantes, ainda que profundamente insatisfatórias; nós, que procuramos na religião ou no ceticismo o que não temos coragem de encontrar dentro de nós mesmos; nós, que buscamos interações ditas “humanas”, através de fios e cabos, monitores e teclados, como eu mesmo, mea maxima culpa, faço agora. Nós, afinal, que partilhamos a grande ilusão da inteligência, paulatinamente tornada farsa e, finalmente, veneno da existência de nossa espécie...
Eis que, mais uma vez, o calendário realiza seu truque de transformação: estamos no início da Idade Moderna agora, com sua empáfia de auto-suficiência, sua sanha de domínio e exploração da natureza do planeta e da humanidade, seu vertiginoso e custoso vício de geringonças e modismos logo tornados lixo, e de lixo convertido em mais modismos e geringonças. Numa palavra, progresso!
Com que objetivo, não se sabe; enfim...


Palavras amargas, bem o sei; amargas como o é, involuntariamente, esse fantasma de lona e serragem, que durante três dias assombrou a pequena cidade modorrenta onde também eu hiberno, na expectativa de um dia caminhar acordado, sonâmbulo que sou. Esse fantasma que me chacoalha inutilmente, na tentativa de me lembrar alguma coisa que eu não sei, ou de me ensinar alguma coisa de que já me esqueci.

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