26 de jun. de 2007

A noite

Segundo seus hábitos, levantou-se cedo; o sol ainda não havia saído naquele dia, que nada prenunciava de especial. Todos os dias são assim, pensou: normais, um após o outro, até o dia final.
O dia final! O pensamento foi-se como veio. Não tinha sentido pensar sobre o eventual fim da linha, tinha a vida com que se preocupar e essa já lhe tomava tempo em demasia (que haveria de fazer com tempo de sobra?). Voltou então o pensamento para o mundo ainda escuro, lá fora.
"O sol não tem pressa nenhuma em se mostrar hoje" — pensou enquanto se barbeava — "Melhor assim, gosto mesmo do escuro." A noite sempre fora metáfora de liberdade para ele, ainda que não tivesse tempo para aproveitá-la.
Saiu de casa para o céu negro acima dele. "Não entendo, já deveria ter clareado!" Um começo de preocupação nasce nele e o acompanha até a fábrica; as luzes acesas mesmo durante o dia nos vestiários e na oficina não lhe diminuem a inquietude, porém no ambiente não há o menor sinal de tensão. Todos parecem encarar com naturalidade o fato de a noite avançar dia adentro. Mesmo desconfiado, se entrega à rotina do trabalho; produz como de costume, ainda que conversasse menos. Almoça sob a impressão de estar jantando (sensação estranha!); voltando à máquina, não sente o calor sufocante do lugar, como quando o sol sai. As horas parecem fluir algo mais rápidas agora, mas seu serviço não é prejudicado por isso. Ainda assim, não entende: "O sol não nasce e ninguém liga! Aliás, parece mesmo é que ninguém percebeu, como é que pode?"

O fim do turno chega, não o fim do seu dia feito noite. A certa altura chegou a esperar que, saindo para a rua, daria com o sol nascendo, numa curiosa inversão da ordem das coisas. Fosse como fosse, o que deveria ser o entardecer era tão escuro e aparentemente normal quanto fora o resto do dia; não faltava mesmo a agitação do horário do rush. Deu de ombros.
"Bom, se o sol resolveu entrar em greve, não posso fazer nada! Era de se imaginar que, se isso acontecesse, fosse o fim dos tempos; mas como continuo vivo, eu e o resto do mundo, e mesmo o transporte público continua funcionando (mal como de costume), então não pode ser o fim. Pra casa então."
Não foi, porém, diretamente para sua casa; foi para o bar, onde ‘assinava o ponto’ todos os dias, como na fábrica. Lá também não notou a menor inquietação entre conhecidos e fregueses ocasionais; a noite iniciara-se normalmente, uma noite que, no entanto, já durava mais de 24 horas.
Foi para casa, cuidou do seu jantar, não cuidou mais daquele dia.
No dia seguinte, tudo correu como na véspera. Ele, que não havia entrado em pânico antes, encarou tudo com naturalidade. Sonho não foi, pensou, ou não se repetiria; e se o sol não existisse mais, não poderia aparecer hoje. Simples assim.
E simplesmente viveu o dia, como vivera todos os outros. Somente o relógio, moderno chicote de feitor de escravos, dava conta do passar do tempo, mas ele não se constrangeu. Refletiu que tinha sido assim desde sempre, que vivera em função das horas, não do sol, da lua ou das estrelas. Sua vida valia menos do que aquilo que fazia, seu trabalho tomava conta de sua vida, suas contas cuidavam de seu dinheiro e seus sonhos morriam com o nascer do sol. Vivera assim por quase 40 anos, por que haveria de mudar alguma coisa?

Mas mudara. A noite tinha se tornado eterna. O sol, assassino de suas fantasias, havia-se perdido sabe-se lá onde: "Vai tarde!" pensou, "durante sua ditadura eu não tive tempo de pensar, de sentir, minha felicidade tornou-se minha sobrevivência; mas agora, agora você não me controla mais! Agora sou livre, tão livre quanto desejar!"
Com esses pensamentos foi então que ele deixou o emprego, a casa em que morava, passou a viver ao relento sob a lua e as estrelas. Nada lhe importava, não havia mau tempo na eterna noite sempre amena. Saiu pelo mundo e conheceu pessoas, criaturas da noite antes dele, que falavam de seus sonhos e desejos, gente para quem a noite jamais cessara, para quem nunca houve um amanhecer. Ele próprio convidava ao perambular sem rumo àqueles que encontrasse. Na maioria, quase todos na verdade, apenas riam-se dele e de sua ingenuidade, e seguiam vivendo como de costume, como que esperando a volta do sol e do dia, suas obrigações e mazelas, e não querendo deixar nada por fazer, nenhuma rotina por quebrar.
Havia porém quem o seguisse, libertando-se das amarras de uma ordem considerada extinta, qualquer que fosse o motivo; esses, contudo, eram unânimes em viver aquela noite sem fim, sem saber se haveria um fim de noite afinal, sem nem sequer se importar com isso. Foi assim que a vida se abriu e a noite tragou a ele e aos outros; eles que entenderam que sua noite jamais terminaria, que sua vida jamais teria limites.
Ainda que os muros de um hospício tentem convencê-los do contrário...

Escrito por volta de 1980

1 contrapontos:

vera maya disse...

Amnésico,

Enfim, um conto!!!
Meio sombrio, mas Lindo

Que venham outros

Bjos