Uma Assembléia de Sombras, fábula moralista
Por largo rio navegava uma grande embarcação, conduzida por insubstancial timoneiro; a bordo iam três sombras, reunidas em congresso.
A primeira, semelhante a uma criança desmesuradamente crescida e forte, ainda que trôpega e vacilante, assim falou:
—“Eu sou a Humanidade, e meu destino é governar o Universo. Nenhum sonho está fora de meu alcance, nenhum obstáculo pode resistir-me; se sou responsável por inúmeros erros e crimes, cometi-os na busca da Sabedoria e da Glória, que me foram predestinados. A História me fará justiça, pois perdurarei para Sempre!”
A segunda sombra, a mais tênue das três, era instável em seus contornos, como se a todo instante experimentasse forma melhor; declarou:
—“Eu sou a Evolução. Malgrado o Universo negar minha existência, tenho dado mostra de meu poder: tornei a Humanidade capaz de dominar tudo o que chega a tocar, e a alcançar aquilo que se põe fora de seu toque. Ainda que meus filhos pereçam, hei de engendrar de suas cinzas novos filhos, ainda mais perfeitos, que me conduzirão sempre em frente, por toda a Eternidade.”
A terceira sombra tinha a figura de uma senhora velha e alquebrada; com o cansaço marcado na voz gentil, disse nesses termos:
—“Eu sou a Natureza, vossa Mãe e Irmã; trouxe-vos à luz por amor à própria Vida. Minhas leis são duras, mas justas: eqüitativamente dispenso poderes e limites, capacidades e necessidades; a Harmonia entre tudo que existe é meu ardente desejo. Mas vós me ultrapassais em vossas ânsias de poder e realização, e me sujeitais pesada e continuamente à escravidão, da qual me ressinto muito; não poderei suportar tal jugo por muito tempo, pelo que vos peço: contei vossa mão.”
Ao que a primeira sombra respondeu:
—“ Perdoa-me, Mãe; mesmo que a quisesse atender, não poderia.”
A segunda sombra, por sua vez, disse:
—“A mim também perdoa, Irmã, pois ainda que o pudesse fazer, não o quereria.”
A terceira sombra disse então:
—“Eu me submeto, não protestarei em vão.”
A paisagem muda subitamente: as margens de suaves campos dão lugar a um panorama árido, opressivo. Surge à ribeira um atracadouro de pedra; para lá o silente timoneiro dirige a nau. No imemorial cais, está uma sombra alta e ameaçadora. O barco atraca e o timoneiro anuncia:
—“Vossa viagem chegou ao fim. Acompanhai a Sombra que vos espera no cais.”
A sombra da Natureza esconde o rosto entre as mãos e chora; as da Humanidade e da Evolução protestam:
—“Isso não pode ser! Nossa viagem não deve ter fim: não vos pagamos, timoneiro, com nossas dificuldades, nossas dores e esperanças, para servir-nos indefinidamente? Por que deveríamos acompanhar tão sinistro condutor e para onde ele pretende levar-nos?”
Responde o timoneiro:
—“Eu sou o Destino; minha tarefa é conduzir a nau do Espaço pelo rio do Tempo. Vossa jornada, vossas dores e esperanças, não as deveis a mim e nem vo-las cobro; para mim não têm valor, pertencem a vós e a vós somente. Quanto à vossa pergunta, a Sombra no cais é a Morte que vem reclamar-vos e levar-vos-á ao Esquecimento, que é o fado de toda Existência.”
E então, derrotadas e pesarosas, as três Sombras desembarcam e, acompanhando o Segador, perdem-se na bruma desolada do Nada.
E o Destino segue viagem, conduzindo a nau do Espaço pelo rio do Tempo, em direção do crepúsculo da Vida.
Inspirado em E. A. Poe e H. P. Lovecraft