Um nada no meio de lugar nenhum, “Califórnia brasileira” (talvez por causa dos terremotos). Aonde vim morar.
É estranho aqui. Já foi uma aldeia branca, o lugar mais ensolarado e quente do mundo, onde ninguém enxergava a cor verde que não existia. Agora são trinta e poucos mil habitantes, mas não se vê gente nas ruas, paira uma condenação sobre o lugar: durante o dia, todos cumprem pena nas usinas de açúcar e álcool e lavouras de cana-de-açúcar ou de laranja; ao entardecer são soltos, e até o comércio fechar, às oito da noite, isso aqui fica parecendo uma cidade normal. Então todos desaparecem, mas não estão nas casas, vendo televisão. Não se sabe como ou porque, talvez devido a uma antiga maldição ou a um raro fenômeno natural, todos os habitantes nascidos na terra se transformam em tatus, que de qualquer forma são raramente vistos (tatu é bicho arisco). Quem não nasceu aqui vira teiú, cobra, coruja ou raposa. Um dia descubro porque.
Isso nos dias de semana. Aos sábados e domingos são liberados da metamorfose para beber até cair ou rezar até enlouquecer (freqüentemente as duas coisas juntas), ouvir sempre as mesmas músicas ruins feitas das mesmas palavras e notas estridentes, se matar em brigas ridículas, escravos do churrasco e da televisão.
O ano todo a areia tenta cobrir a cidade e não consegue, então pede ajuda à cinza que cai do céu durante metade do ano. Um dia a cidade acaba engolida, isso se a lavoura de cana não avançar tomando conta de tudo, junto com os gafanhotos mortos que brotam do chão e que não podem ser varridos: quanto mais se varre, mais eles se multiplicam; então são deixados onde estão, pisados pelos transeuntes que já não são capazes de vê-los e transformando-se lentamente numa pasta verde que se mistura ao asfalto solto das ruas e ao esterco de cavalo nas calçadas. O certo é que a cidadezinha vai desaparecer um dia, e o bosque dos suicidas não vai mais receber ninguém para se enforcar, e os fantasmas vão ter de se mudar para outra cidade; ou talvez vão para as usinas abandonadas disputar lugar com as assombrações de lá, que à noite fazem o canavial gemer de um jeito estranho.
“Cidade Doçura” é o apelido deste lugar amargo, onde os recém falecidos cruzam a cidade em carro de som, anunciando a própria morte e convidando para o enterro. Não, talvez não, talvez eles apenas paguem ao locutor para fazer o anúncio, foi exagero meu. Como é exagero dizer que todas as emissoras de rádio são na verdade uma só, já que todas tocam as mesmas músicas e falam das mesmas coisas, todos os dias, todas as horas, a vida toda.
Mas será exagero dizer que o prefeito foi impedido de concorrer às últimas eleições por causa de dívidas não pagas, à última hora colocou o nome da esposa no lugar do seu nas cédulas e ganhou a eleição? Ou que um candidato a vereador não teve nenhum único voto, nem mesmo o próprio? Ou que todo mundo que vem de fora para trabalhar no açúcar e álcool ou laranja sai daqui pior do que chegou, quando chega a sair? Ou dizer que, vindos da estação rodoviária mais próxima, os raros visitantes só podem chegar até aqui por três ônibus, dois com nome de "Sanatório" e um de "Penitenciária", e que esses nomes descrevem a cidade muito melhor do que seu apelido promocional? Ou que nem cachorros se vêem andando nas ruas? Ou que a água da rua chega fervendo pelos canos? Ou que a linha de trem é um caminho de procissão de fantasmas? Ou que o comércio vive do vento seco, quente e cheio de poeira? Que as pessoas que odeiam os migrantes na verdade odeiam a si mesmas? Que é preciso de autorização (de quem?) para se comprar corda? Que a vida rural não existe mais? Estarei exagerando desde o início?
Será que eu me mudei mesmo pra cá? Ou sou um teiú escondido no mato?