Um escorpião mora em minha língua. Pela minha voz ele ataca, sem provocação, àqueles com quem falo: envenena prazeres, apodrece solicitudes, mumifica esperanças. Não riria disso, mesmo que pudesse.
Uma cobra-cega mora nos meus olhos, enrolada neles. Ambos só eles. Ambos sem cor. Ambos ambidestros. Ambos inúteis.
Um ninho de vespas mora em meus ouvidos. Os sons do mundo me chegam borrados, indistintos, perigosos — carregados de ameaças que o mundo não me faz, destituídos das promessas que não me alcançam, barulhentos num mundo em que silêncio é morte e a morte é ruído. Esse constante ruído — esse ruído constante — esse ruído — ruído — ruído — ruído —
Uma lampréia mora em minha pele e ossos, só boca e dentes e língua sem mandíbula, parasita de outros peixes — coisas — idéias — pessoas. E esses não sabem que eu estou lá. Ou não querem saber.
Um lobo mora, faminto, em minhas vísceras. Se você me encontrar, fuja ou mate-me. Não fará diferença, desde que eu não o alcance primeiro.
Um elefante mora em meu fígado. Quanto mais eu me entorpeço, mais ele me regenera — para sofrer do envenenamento de novo. E ai de quem cruzar os meus passos.
Uma jibóia mora em meus braços e pernas: eles se enroscam em você e tiram seu fôlego bem devagar. E depois eu vou ficar imóvel por seis meses, digerindo, esperando. Esperando outro você. Esperando o mesmo você de sempre.
Um formigueiro mora em meus pés. Não tenho objetivo senão seguir irracionalmente em frente, não tenho descanso senão na morte que não chega nunca.
Um abutre mora em minhas veias, comendo a carniça da civilização, rapinando idéias mortas de sábios esquecidos, esperando que os sábios lembrados morram. Pois eu tenho fome.
Uma tartaruga gigante mora em meu cérebro. Conheço o mundo com remelentos olhos seculares, masco conhecimento com um seco bico córneo, defeco pedras fúnebres: desprezo o passado, desprezo o presente, desprezo o futuro; desprezo a mim mesmo. E ainda estou aqui.
Vermes moram em meu coração.